Recenseamento da Prática Dominical (2001)
no Patriarcado de Lisboa

 

I. Do “praticante” ao “peregrino”

No contexto da chamada “civilização paroquial”, a figura do “praticante regular” era a figura central de toda a descrição da cena religiosa. Por referência à norma religiosa incarnada pelo “praticante regular” se estabeleciam as figuras degradadas do praticante “sazonal”, “festivo” ou episódico — “o cristão de carrinho, de carrão e de carreta”. Ao nível mais diluído da participação esboçava-se a figura do “desligado”, aquele que não mantém qualquer ligação com a instituição ou que nunca teve contacto com ela. A figura do praticante permitia assim representar a cena religiosa como um dispositivo de círculos concêntricos ordenados em torno do núcleo central dos seus fiéis “regulares”.

Hoje, a figura do praticante mostra bem os seus limites quando há que descrever uma situação religiosa dominada pela fluidez dos percursos crentes individuais e pela mobilidade de associações comunitárias continuamente refeitas. Para tentar explicar esta situação, Danièle Hervieu-Léger propõe, num dos seus últimos livros (La religion. Le pélerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999), a figura típica do peregrino como suporte de uma descrição alternativa. Remete, em primeiro lugar, de forma metafórica, para aquela religiosidade plástica que atravessa as demarcações confessionais e se impõe hoje, em alguns estratos, no seio do próprio catolicismo. Corresponde, também, a uma forma de sociabilidade religiosa em plena expansão, que se estabelece sob o signo da mobilidade e da associação temporária.

A sociologia contemporânea da modernidade religiosa dá uma grande atenção a esta “religiosidade peregrina” em plena expansão. Quererá isso dizer que a figura do praticante perdeu toda a sua pertinência? Embora com as limitações que lhe são reconhecidas, a utilização da prática dominical como indicador da difusão e da profundidade das crenças religiosas é ainda considerada como uma legítima aproximação ao complexo fenómeno da religiosidade. A validação deste instrumento de medida passa, sobretudo, pela aderência de tal indicador ao teste das suas correlações com outros indicadores disponíveis para avaliar a religiosidade dos inquiridos. 

II. Recenseamento da Prática Dominical no Patriarcado de Lisboa (2001)

Os resultados do Recenseamento da Prática Dominical realizado em 10 e 11 de Março de 2001 no Patriarcado de Lisboa foram apurados pelo Centro de Estudos Sociais e Pastorais da Universidade Católica Portuguesa, com base na informação fornecida pelas paróquias do Patriarcado de Lisboa. São apresentados apenas resultados do total da Diocese que, na heterogeneidade das diferentes regiões e zonas pastorais que integra, apresenta significativas variações a exigir leituras específicas e o respectivo confronto com os totais do Patriarcado. Não incluem ainda referência ao volume e estrutura da população residente no território da Diocese, porquanto os dados definitivos do Recenseamento Geral da População de 2001 ainda não estão publicados.

Registou-se uma diminuição do número de praticantes entre 1991 (241.757) e 2001 (219.974). Entre 1977 e 1991, tinha havido um aumento de 23 332 praticantes (+10.6%); e de 1991 para 2001 houve um decréscimo de 21 783 (-9.0%). Neste mesmo período, a nível nacional a variação foi de -15%.

No Patriarcado de Lisboa a percentagem de praticantes, em 1991, foi de 12.2% e a estimativa para 2001 situa-se entre 10 a 11%. A variação, embora negativa, prevê-se ser menos significativa que a variação a nível nacional.

Em relação aos recenseamentos anteriores, permanece estável a distribuição dos praticantes por sexo: sensívelmente, 2/3 de mulheres e 1/3 de homens. Mas, na distribuição dos praticantes por classe etária, regista-se uma acentuada quebra (-30.7%) no número de praticantes nas duas primeiras classes (7-14 e 15-24 anos), possivelmente maior que a quebra estimada para a população dessas faixas etárias, nos últimos dez anos. A quebra é relativamente maior nas raparigas do que nos rapazes.

Em contrapartida, verifica-se uma subida muito significativa (+12.1%) nos efectivos de praticantes das duas últimas classes etárias (55-69 e 70 ou mais anos), sobretudo nos homens. É patente o envelhecimento crescente das assembleias dominicais: a percentagem de praticantes com 55 anos ou mais passou de 38.7%, em 1991, para 47.9%, actualmente.

Continuou a aumentar a percentagem de comungantes nos praticantes, nos dois sexos e em todas as idades: em 1977 foi de 42.9%; em 1991, 55.0%; e em 2001 é de 60.4%. Entre 1991 e 2001 registou-se um maior crescimento da percentagem de comungantes nos homens, embora continue a haver mais mulheres a comungar. O maior aumento deu-se na classe etária dos 25-39 anos, sobretudo nos homens.

O número de lugares de culto, que tinha aumentado 18% dentre 1977 e 1991, sofreu uma ligeira diminuição no último decénio: de 829 em 1991, para 804 em 2001, isto é, uma variação de -3.1%.

Verificou-se um decréscimo do número de celebrações eucarísticas dominicais, entre 1991 e 2001, tendo passado de 1428 para 1331 (-6.2%). “Assembleias Dominicais na Ausência de Presbítero” só aparecem registadas 5, em 2001.

III. Pastoral do Domingo e celebração da Eucaristia

A análise atenta destes resultados quantitativos lança-nos para uma série de questões de fundo; questões prévias que condicionam a concretização de alternativas eclesiais que não sejam meras operações de maquiagem, mas resposta adequada aos apelos que nos chegam dos “sinais dos tempos”. Questões que hão-de ser equacionadas tendo bem presente factores de diversa ordem — sócio-culturais, sócio-religiosos, sócio-pastorais — com forte incidência, directa ou indirecta, nas alterações verificadas na prática dominical; factores incontornáveis na procura de soluções viáveis, se bem que arrojadas, enquanto para isso ainda dispomos de recursos suficientes, face à crescente escassez de clero. Nesse sentido, é urgente promovermos espaços de informação teológico-pastoral actualizada e de levantamento e debate sobre estas questões pendentes— por exemplo, acerca dos serviços e ministérios eclesiais. É urgente partilharmos não apenas as perplexidades ou os desencantos, mas também os pequenos-grandes passos que vamos dando na procura de novos caminhos.

Há, todavia, uma questão preliminar, directa e imediatamente ligada aos resultados aqui apresentados e que me limito a formular nestas interrogações que põem em causa a nossa pastoral sacramental, nomeadamente a pastoral da Eucaristia: como são preparadas, participadas e continuadas vitalmente as nossas celebrações litúrgicas? Como se tornam evangelizadoras as nossas eucaristias na sua forma própria, isto é, mistagógica? Porque é que muitas das nossas celebrações eucarísticas dominicais não atraem os jovens? São elas momentos de festa e de beleza, momentos de reenvio em missão? Interrogações a exigir de nós uma avaliação criteriosa da diversidade de situações, em ordem a ultrapassar “fixismos” e a moderar “vanguardismos”.

Uma outra questão imediata é a que diz respeito à descoberta e vivência do Domingo como a festa primordial — o Dia do Senhor, o Dia do Espírito, o Dia da Assembleia Eucarística, o Dia do Homem, o Dia dos Dias. Foi na sequência da análise dos resultados do recenseamento da prática dominical em 1977 que se criou a Comissão Nacional para a Pastoral do Domingo. O esforço notável que então foi desencadeado no sentido da redescoberta do Dia do Senhor, da sua condigna celebração e da sua projecção prática na vida dos fiéis e das comunidades, deu origem a um vasto movimento de sensibilização, de catequese e acção pastoral em torno desta fundamental instituição cristã. Importa, agora, retomar o esforço então desenvolvido, sem deixar de ter em conta a emergência e a afirmação de novas mentalidades e práticas religiosas, como já foi referido.

A fidelidade à prática dominical terá cada vez menos apoio em motivações sócio-culturais. Noutros tempos, tanto a pressão social como o peso das tradições familiares, impulsionavam as pessoas à pratica religiosa e, nomeadamente, à “assistência” à missa dominical. Agora, ocorre o contrário. Actualmente, só convicções religiosas arreigadas, uma fé pessoal fortemente assumida, uma educação cristã profunda, podem garantir a participação assídua e responsável dos cristãos na celebração da eucaristia dominical.

Pe. António Janela